Painel do Mundo
Por Márcio Bariviera (19/05/2024)
Os dias não seriam mais os mesmos, pensava Mathias. Ele era um garoto de apenas 12 anos, mas sabia que tudo seria diferente a partir daquele momento. A normalidade, por vezes tão ignorada, fazia uma falta absurda.
Os sábados de manhã ensolarados quando ele e alguns dos seus amigos eram reunidos pelo Valdir que lhes ensinava xadrez na praça, embaixo das árvores, respirando o ar puro, poderiam nunca mais acontecer. A lama havia tomado conta da praça, do bairro e de grande parte da cidade. A enchente não perdoou cor, raça ou religião. Peão e rainha, torre e cavalo, ao menos nas condições atuais, estavam com os mesmos poderes. Ou sem melhor, sem poder nenhum.
E as aulas daquela matéria que ele não gostava? Foram adiadas. A escola havia “desaparecido” em meio a tanta água. O colorido das paredes dava lugar a uma cor marrom desbotada, fria, injusta. O mundo parecia injusto. Quiçá fossem somente as cores... A hora do recreio era cheia de alegria, de vida. O tio Zilo “fazia a nota” vendendo guloseimas para a turma, pois ele tinha um mercadinho ao lado da escola e realizava as vendas através da tela. E os pastéis da tia Neide, sua esposa? Os melhores do mundo. Todo recreio era uma espécie de tumulto para comprar o salgado. Nada mais existia. Ninguém mais estava ali. O mercadinho também foi “engolido” pela água, pela lama, pelo marrom...
A água veio rápido, com muita força, como se a Mãe Natureza estivesse revoltada, não se importando com nada e ninguém. Para ela, naquele dia de fúria, dama e peão tinham o mesmo valor. Ou nenhum. Mathias morava perto da escola. Sua casa também não resistiu. Enquanto ele conseguiu ser resgatado por não estar lá no momento derradeiro, Seus pais, porém, estavam desaparecidos. E a vida girou 180 graus em um estalar de dedos. Mathias procurou rezar. E rezar muito, como nunca havia rezado. Jamais havia conversado com Deus e com o Santo Anjo, santo que por muitas vezes ele ignorava no quadro pendurado em seu quarto, que refletia a imagem de duas crianças brincando numa beirada de barranco, sendo protegidas por ele.
À noite, recolhido em um ginásio da cidade, juntamente com muitos desabrigados, reencontrou seus pais. A vida, ao menos por uns instantes, voltava a ter alegria. Os melhores abraços do mundo estavam ali, de volta. Seu pai tirou do bolso dois times de futebol de botão que estavam nos saquinhos plásticos que Mathias organizava, dizendo ao filho que foi a única coisa que conseguiu salvar. E ali o menino entendeu por que chamam os pais de heróis.
Em seguida um garoto se aproximou, notou Mathias manuseando os times e pediu se podia jogar com ele. Arredaram os colchões e improvisaram um campo. Não haviam goleiras e nem palhetas. Goleiras foram improvisadas com pedaços de guardanapo, como se fazia com Havaianas nos campinhos, pé direito aqui, pé esquerdo ali. E palheta seria de menos, ia na unha mesmo. Pedaços de guardanapo serviam de bola, também. Afinal, era só amassar e fazer várias.
E ali, diante de toda a tragédia, na medida do possível, Mathias voltava a ser um menino feliz. Afinal, a vida tinha que continuar, assim como as partidas de botão ou de xadrez. Aliás, que bom seria se, na prática, peão e rainha fossem iguais...
O gaúcho de Rodeio Bonito, Marcio Bariviera é gerente administrativo do União Frederiquense, clube que disputa a Série A2 do Gauchão, além de assinar uma coluna semanal no jornal O Alto Uruguai, de Frederico Westphalen-RS. Rock e futebol de botão são duas paixões desde a infância (e se puder dar palhetadas ouvindo Led Zeppelin fica time completo).
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