Painel do Mundo
Por Alysson Cardinali (26/07/2023)
Corria o ano de 2018 quando o professor de geografia Jorge Ferraz, motivado por um conselho de seu filho, Iuri, que “descobrira” a loja Botão FC, no então Shopping Iguatemi (hoje Boulevard Rio), decidiu vivenciar a experiência de voltar a palhetar um botão. O intuito do primogênito era livrar o pai de uma incômoda e insistente crise de depressão, que teimava em dominar o coração e a mente daquele senhor de 55 anos de idade, quase aposentado, mas ainda lecionando (de forma bem menos frequente), e refém de certa ociosidade, ao melhor estilo “cabeça vazia, oficina do diabo”.
Santa decisão! Endiabrado como ele só, Jorge não apenas seguiu o pedido do filho como descobriu um remédio eficaz para (quase) todos os males da alma. Orientado por Ricardo Baruque, dono da famosa loja especializada em futebol de mesa, virou freguês do comerciante e futuro amigo, além de assíduo integrante das famosas Terças Nobres, quando vários botonistas (federados ou não) batiam um dadinho nos acirradíssimos e emocionantes campeonatos promovidos pela Botão FC. Estava dada a palhetada inicial para uma trajetória de sucesso e conquistas — dentro e fora das mesas.
Alegre, irreverente e sempre bem-humorado, Jorge, com suas tiradas inteligentes sobre os mais variados assuntos, logo fez a cabeça dos frequentadores do recinto. Sagaz, mais do que dadinhos no filó, enfileirou boas relações e amizades especiais e duradouras — Baruque, Tarouca, Adriano e Alysson, entre outros, que o digam. A crise de depressão foi jogada, com categoria, para escanteio. Afinal, quando não estava nas mesas em busca de vitórias ou bebendo aquela cerveja estupidamente gelada pós-torneios, o Velhinho dava pedaladas com sua bike, criava alguma refeição extravagante (feijoim era a especialidade) em sua cozinha ou partia em busca de um flerte pré-namoro.
O futebol de botão, no entanto, foi o que realmente conquistou Jorge Ferraz. Definitivamente. Ele se apaixonou pela arte de palhetar e se casou com a ideia de ser um atleta federado. Nem a fatídica pandemia de Covid-19, que parou o mundo, foi capaz de arrefecer seu amor pelo esporte. Dois anos depois de uma interrupção forçada, após ter sido infectado pelo fatídico vírus, sem maiores consequências, reapareceu ele, com sua bolsinha na qual trazia o time das mulheres de esquerda que fizeram história ou o dos jogadores boêmios que tiveram sucesso no futebol — com os quais faria bonito, futuramente, em campeonatos da Federação de Futebol de Mesa do Rio de Janeiro (Fefumerj).
Naquele momento, porém, o intuito era retomar a prática do esporte. Nada melhor do que em um ambiente, digamos, mais arejado. Livre do irritante uso das máscaras, ao ar livre, voltou a frequentar a Praça São Salvador, em Laranjeiras, nos torneios promovidos pela Lafume — havia se tornado membro da Liga dos Amigos de Futebol de Mesa em 2019, com direito à lives na internet, com personalidades do esporte, no período pandêmico. Mas poder reiniciar as palhetadas foi motivo de satisfação. Tal período marcou, também, o passo inicial rumo a um degrau mais alto nas mesas: ser um atleta federado.
Motivado pela iniciativa da Lafume de inscrever alguns de seus membros nas competições da Fefumerj (individual e de equipes), no início de 2022, Jorge Ferraz logo tornou-se um dos destaques da agremiação no Estadual. A prática constante do esporte (fosse na Lafume, na Botão FC ou em várias outras ligas independentes espalhadas pela cidade do Rio de Janeiro, onde também era frequentador assíduo), além de seu talento natural, fez o seu jogo crescer e aparecer. Tal evolução foi percebida logo em sua primeira temporada como federado. Dono de um estilo de jogo elegante, com palhetadas sutis, “legalaizes”, Jorge foi campeão de uma etapa do Estadual, na categoria Master, vestindo a camisa esmeraldina.
Se realmente há sorte no jogo e azar no amor, não se sabe. Mas é fato que, após essa conquista, o romance da Lafume com a Fefumerj chegou ao fim de forma precoce, inesperada e inexplicável — o que causou tremenda frustração não só a Jorge, mas aos demais membros da equipe, que fazia sucesso pela união e desempenho nas etapas oficiais até aquele momento. Nada que parasse o nosso amigo e craque das mesas. Não demorou muito e Jorge foi convidado pelo Vasco da Gama para seguir como atleta federado. Torcedor do Fluminense, ele “virou casaca” e passou a ser o Tricolor de coração mais curzmaltino que se tem registro. Brincadeiras à parte, conservou seu carinho pelo clube tantas vezes campeão, mas vestiu com galhardia a camisa do Gigante da Colina.
Tanto que, ainda em 2022, fez bonito e sagrou-se vice-campeão Estadual individual logo em seu primeiro ano na federação, batendo feras da modalidade e superando expectativas. Motivado, manteve o alto nível de seu jogo. Com um adendo: passou a ser cada vez mais respeitado pelos adversários, que, invariavelmente, tornavam-se amigos, batidos não só pela genialidade de Jorge Ferraz nas mesas, como por seu carisma fora delas. Diante disso, a temporada de 2023 se desenhava promissora para o botonista tricol...digo, vascaíno. O sucesso como botonista não mudou o sujeito amante das resenhas com os amigos, do torresmo no Bode Cheiroso, da cerveja sempre gelada. As aulas de geografia e o contato com os alunos também eram motivo de alegria. Este ano, porém, um adversário, sorrateiro, surgiu na vida do destemido botonista.
Tal adversário não fazia gols nas mesas, mas causava dores em Jorge. Físicas. Volta e meia ele reclamava de incômodos na barriga, cujo caroço era facilmente perceptível. Apesar dos conselhos dos mais chegados, tentava driblar a incômoda hérnia com o talento das mesas e uma palhetada à la Paulinho Quartarone. Quis o destino — ou Deus, sabe-se lá — que este duelo terminasse com vitória do adversário. Infelizmente. No dia 1 de julho, Jorge estava na Botão FC, fazendo um treininho leve comigo e com o querido Julio Balada. Era um sábado à noite. Pouco antes do fim do expediente, pediu a Balada que guardasse seu time na loja, pois, terça-feira, estaria de volta ao shopping para a tradicional etapa semanal.
Pedido atendido, fomos para a carrocinha que vende churrasco próximo ao shopping. Eu, Balada e Ferraz. Felizes, falando sobre a vida e sobre o nosso querido futebol de botão. Jorge beberia apenas uma lata de cerveja. Instigado por mim, aceitou a saideira. Mas admitiu estar cansado e que vinha sentindo as irritantes e constantes dores no abdome. Imaginei não ser nada sério. Só não poderia imaginar que seria meu último contato com este craque-amigo (não necessariamente nesta ordem).
Na segunda-feira, 3 de julho, soube, pelo zap, que ele fora internado de emergência e faria a cirurgia para corrigir a tal hérnia. Duas semanas depois, recebi a notícia de sua morte. Perdi um amigo e o futebol de mesa um talento nato, que fez do esporte não só um antídoto para a depressão, mas um exemplo de socialização, de união, de respeito, de lealdade. Siga sua trajetória de sucesso em outro plano, Jorge Ferraz, que faria 60 anos de idade no fim de agosto! Este é o desejo de todos os amigos que tiveram o privilégio de te conhecer.
Biblioteca de "Planeta Dadinho"
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Nascido em Nova Friburgo (RJ), mas morando há 30 anos na cidade do Rio de Janeiro, o jornalista esportivo Alysson Cardinali, com passagens pelos jornais O Fluminense, Jornal dos Sports, O Dia e Expresso (Infoglobo), revistas Placar e Invicto, além do canal SporTV, é um apaixonado não só pela profissão, mas pelo futebol de botão. Praticante da modalidade dadinho, Alysson, de 51 anos, é atleta federado, pelo Fluminense Football Club, na Federação de Futebol de Mesa do Rio de Janeiro (Fefumerj) e, além de disputar as competições oficiais pelo Brasil, pretende divulgar o esporte e angariar cada vez mais praticantes para perpetuar o futebol de botão entre as futuras gerações.
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