Painel do Mundo
Por Márcio Bariviera (27/10/2024)
Sábado de manhã. O som do despertador da semana daquele pai foi substituído por algo bem mais leve: a risada do seu filho. O menino estava ajoelhado no chão da sala com suas pequenas mãos tentando ajeitar as traves de um campo improvisado de futebol de botão. O Xalingão havia ficado de lado e a atividade estava sendo ali mesmo, no envernizado chão da sala.
A bola de plástico rodopiava no chão, enquanto ele falava sozinho, narrando e comentando o jogo. Era impossível não se orgulhar daquela cena. Sua esposa, de avental e com uma xícara de café na mão, passou ao lado, sorrindo. "Os boletos podem esperar", pensou, já que o final de semana ainda nem havia iniciado e não tinha motivo para focar na segunda-feira, afinal, o sábado era dia de lazer e as contas poderiam – e deveriam – ficar ali, ignoradas sobre a escrivaninha, até por que havia algo muito mais importante: alimentar o futebol de botão para a próxima geração.
"Pai, me ensina esse chute aqui", pediu o filho, fazendo uma careta, concentrado. O pai se agachou e explicou como deveria ser o arremate. "Olha, tem que deslizar a palheta assim, de leve, senão vai para fora". Sua esposa riu baixinho, achando graça no entusiasmo da dupla. A cena era um espelho da própria infância daquele pai e, certamente, a nostalgia bateu forte.
Enquanto eles jogavam, ao fundo tocava um rock dos anos 70, cuidadosamente colocado na caixinha de som por sua esposa. Era provável que o menino ainda não entendesse o que era Led Zeppelin, embora, na ideia de seu pai, seria apenas uma questão de tempo. As músicas levaram o pai de volta à época dos vinis e dos bons e inesquecíveis encontros com os amigos, quando se discutia sobre as bandas, sobre os riffs e ainda se jogava bola nos campinhos onde as goleiras eram pares de Havaianas.
A partida continuou. Enquanto o pai jogava com o Cruzeiro, seu filho defendia as cores do Botafogo. O menino já tinha pegado o jeito da coisa, depois de ter seguido à risca as instruções do pai, enquanto o pai errava propositadamente, forçando sua própria derrota, mas sabendo que ali estavam sendo construídas memórias e, mais do que isso, a continuidade do esporte que naquele momento era apenas um brinquedo de criança.
No fim, o placar foi algo como 10 a 2 para o menino, embora a verdadeira vitória parecesse ser do pai por, talvez, estar ali construindo um futuro campeão. Além do mais, memórias resistem ao tempo, a crises econômicas, à alta do dólar, aos boletos. Isso tudo sempre vai existir, mas nada se compara aos momentos em família. E mais do que o próprio jogo recém-findado, aquilo foi um respiro no meio da correria da vida adulta. Uma lembrança de que o lazer, às vezes, é o que mantém a sanidade em meio ao caos.
Era hora de tomar o café da manhã. Antes de chegar à mesa o menino olhou para aquele boleto em cima da escrivaninha e perguntou ao pai o que eram aqueles riscos pretos no cantinho do papel. “São códigos de barras, filho”, respondeu o pai. “Ahh... Achei parecida com a camisa do meu Botafogo”. O pai riu e disse que chegaria o dia em que o garoto entenderia melhor sobre os tais riscos. E sentaram-se à mesa, naquele instante embalados por Deep Purple.
O gaúcho de Rodeio Bonito, Marcio Bariviera é gerente administrativo do União Frederiquense, clube que disputa a Série A2 do Gauchão, além de assinar uma coluna semanal no jornal O Alto Uruguai, de Frederico Westphalen-RS. Rock e futebol de botão são duas paixões desde a infância (e se puder dar palhetadas ouvindo Led Zeppelin fica time completo).
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