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Por Márcio Bariviera (16/07/2023)

De alma leve

Na pele, a cor negra. Apelido? Dinho, uma espécie de diminutivo de “coitadinho”. Ser chamado de Dinho pela turma era mais diminutivo ainda. Mas ele sobrevivia. Sentia cedo, ainda na adolescência, nos olhos de seus colegas, o racismo impregnado na sociedade. Seu nome? Gerson. Nome de craque, homenagem de seu pai ao “Canhotinha de Ouro”. Tinha a alma leve, ressentimento zero com as coisas que aconteciam em seu cotidiano.


Gerson incomodava os garotos da escola de forma indireta, sem esforço, sem saber que incomodava. Talvez essa era a forma que Deus “dava poder” a ele para enfrentar as dificuldades diárias de ser alguém de cor negra. E ao mesmo tempo em que Gerson não tinha noção alguma de estar incomodando pessoas em seu entorno, sentia um misto de força e de paz que o fazia ser mais iluminado ainda.


Quando jogavam bola na escola, normalmente o time de Gerson era o que ganhava, sempre com ele, que também era canhoto, se destacando. Os garotos que se intitulavam os reis da turma, sempre ficavam no outro lado. E não gostavam daquilo. Nas aulas de educação física, quando iam para o lado do atletismo, Gerson chegava na frente com sobras.


E não era apenas na parte do esporte que ele se destacava. Suas notas eram quase sempre as melhores, ia bem de Português a Matemática, de Geografia a Religião. Não havia dúvidas que Gerson era diferenciado, embora sua cor incomodasse parte de quem o cercava.


Ele era o melhor amigo de Clara, a menina mais bonita da sala de aula. Era para Gerson que ela contava seus segredos, era perto dele que ela sentia paz, era por causa dele que vinham os melhores sorrisos de seu belo rosto. E, não poderia ser diferente, isso irritava vários meninos que desejavam Clara como namorada e não conseguiam conquistar sua simpatia e muito menos o seu coração.


Um dia os colegas resolveram organizar um torneio de futebol de botão. Seria no sábado à tarde. Corajoso, Gerson perguntou se poderia participar, já que não havia sido convidado. Ouviu várias risadas, mas seu pedido foi aceito. Afinal, seria o momento perfeito para o humilharem ainda mais.


Chegou o sábado e lá estavam doze colegas de escola disputando o torneio. A competição foi acontecendo e Gerson chegou nas semifinais. Quem estava ali, entre competidores e torcedores, se surpreendeu com sua desenvoltura. Era bonito de ver como ele sorria a cada jogada, até mesmo quando sofria um gol.


Na semifinal, enfrentou o favorito, atual tricampeão, um dos líderes da turma que Gerson indiretamente incomodava. O jogo estava muito disputado e nos instantes finais o placar apontava 2 a 1 para o seu adversário. Ele teve a última bola, um lance muito parecido com várias de suas jogadas no torneio e que até então o aproveitamento era de 100%. Olhou ao seu redor, onde o silêncio predominava. E foi ali que notou a presença de Clara, que sorriu para ele. Disparou a bola para longe, muito longe da baliza, quase como Baggio fez na Copa de 94. Acabou o jogo com a derrota e consequente com a eliminação.


Vários que estavam naquele ambiente riram, e riram muito. Ele sabia que o torneio seria uma espécie de “8 ou 80”: ou ganharia ou seria humilhado. Nada diferente do que acontecia todos os dias em sua vida. E, também, nada diferente seria sua reação: permanecer com a alma leve.


Já estava indo embora quando Clara o chamou, vindo ao seu encontro. Ficou curiosa, afinal, como que um menino que jogava tão bem diante do atual tricampeão tivesse feito uma jogada decisiva tão horrível?


– Achei melhor assim. A cada dia que passa me convenço que não preciso ficar provando que não sou diferente de ninguém por causa de minha cor. Se eu empatasse e depois ganhasse dele, ali na frente eu seria tratado com mais preconceito ainda. Não sei se isso vai mudar algum dia, mas vou preferir tentar viver uma vida normal. Se uma pessoa gostar de mim já é o suficiente para eu saber que não estarei sozinho – disse Gerson.


 – Eu gosto. E você me orgulha demais, como orgulha seus pais, seus professores e com certeza muitas pessoas de bem que não aceitam essa coisa nojenta – respondeu Clara, dando um abraço apertado e demorado nele.


Nenhuma lição é maior do que mostrar às pessoas que estão ao seu redor que todos somos iguais, independente da cor. É difícil? Muito. Vai longe? Possivelmente. Gerson perdeu o torneio, porém foi mais um capítulo em que, de alma leve, venceu na vida.

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Marcio Bariviera

O gaúcho de Rodeio Bonito, Marcio Bariviera é gerente administrativo do União Frederiquense, clube que disputa a Série A2 do Gauchão, além de assinar uma coluna semanal no jornal O Alto Uruguai, de Frederico Westphalen-RS. Rock e futebol de botão são duas paixões desde a infância (e se puder dar palhetadas ouvindo Led Zeppelin fica time completo).

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marcio_bariviera@mundobotonista.com.br
(055) 99988-6612

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