Painel do Mundo
Por Sérgio Travassos (19/09/2024)
As horas arrastam-se tal qual um caracol pela calçada. Escapando sem agilidade alguma dos pés que insistem em transitar. A tão sonhada hora não chega? Parece que não. Rabisco ansioso o lápis no caderno. Números e letras a formarem fórmulas e frases ditas por alguém que tentou subjugar algum povo. Sem nexo. De péssimo gosto. Olho pela enésima vez o relógio em cima da estante escura, guardado por dois dragões azuis com dentes afiados. Tão imponente e desdenhoso como um rei, se apresenta esse relógio. Senhor que separa a diversão de mim. Volto o olhar para aquelas páginas que já foram apagadas inúmeras vezes. Distraído, sigo tentando fazer o que há a fazer. Osmose. Terras distantes, os planetas, o fundo do Oceano, Viagem ao Centro da Terra, revoluções e golpes na minha liberdade. Em outros momentos, seria deslumbrante me embrenhar por esses lugares. Agora, não. Ferem. Irritam. Errei novamente. E tome borracha para tentar apagar aquele pequenino ato falho. Mais uma olhadinha para o Rei Relógio no seu trono. Aquele ponteiro fino e longo parece fazer o trabalho dele. Se esforça para ser rápido. Mas os outros não colaboram e seguem lentos a fazer o seu trabalho com o mesmo desdém que estou tendo nesse momento. Sigo tentando empenhar-me. Concentra. Concentra. Concentra.
Parece que deu certo. A hora é agora. Fecho o caderno tão divinamente encapado pelas mãos habilidosas de mainha. Uma reluzente capa verde com listras brancas. Agradeço a aula e a hora. Guardo tudo contendo a vontade de jogar tudo para cima. Corro. Pego a caixinha amarela dentro de uma caixa de TV de tubo. Salto para fora como se não houvesse porta, desço as escadarias e, entre um andar e outro, lá estava ele. Tal qual a capa dos meus cadernos um brilhante, incrível, belo e fantástico Estrelão. Uma paradinha para apreciar aquele momento. Fotografia vívida em minha mente. Lá estavam todos pendurados ou pendurando-se nesse vão entre os andares. Ah, que arquiteto maravilhoso que desenhou um local perfeito para a turma do pequenino prédio na Zona Norte de Recife. Melhor do que qualquer Maracanã, Arruda, Fonte Nova, Mineirão, pois ele poderia ser todos numa tarde-noite.
Era chegada a hora. Mãos pequeninas abrem a caixinha de papelão amarela. A tampa colocada ao lado. Lá estavam eles, ávidos por adentrar no relvado imaginário: os jogadores do Santa Cruz Futebol Clube. Um a um, de mãos estendidas, pedem para serem retirados do ônibus de papelão. Um cuidado carinhoso. Um a um, pisam no campo de jogo. A torcida enlouque. Comentários, apostas, pragas, gritos de guerra, narrações, fogos. Time em campo. O massagista faz o seu derradeiro trabalho antes da batalha que se avizinha. Um a um, deslizando sob a flanela com carnaúba milenar. Breve é o aquecimento. O cheiro da carnaúba embriaga-me. Que perfume. A bolinha está no centro do gramado. Pedindo para sermos rápidos em tocá-la com precisão. Moedinha sobe por sobre as nossas cabeças. Cai num estrondo, no campo. Como se ansiosos, todos os jogadores saltam. Definido quem vai começar a peleja. A final do campeonato da rua era só o que importava. Até as meninas estavam presentes, a estender os braços para cima. Que farra. Dez minutos e só. Voou. O troféu imaginário nas mãos volta olímpica. Apertos de mãos, abraços, berros, beijos.
Mais e mais jogos corriam em mais outro campeonato. Um grito de adulto aqui e outro ali. Já?! Como?! Mal começamos e já terminou? Parece que sim. E seguimos a guardar os nossos esquadrões nas caixinhas de papelão. Ah, Rei Relógio. Tão lerdo para o que precisa ser feito e tão veloz quando, finalmente, um sonho estava sendo realizado. Sonho que mantemos vivo, ainda hoje, após tantos anos, mantendo viva a nossa criança. Jogo de botão, a verdadeira magia de transformar o sonho em realidade.
Sergio Travassos é diretor do Santa Cruz F.C., jornalista com outras duas formações, Educação Física e Marketing, que atua há muito tempo em prol do desporto pernambucano. Tendo passagens pela Federação Pernambucana e CBFM. Sendo uma das figuras que mais defende o jogo de futebol de mesa, independente da regra de atuação, bem como que as competições sejam feitas em locais públicos, visando atrair mais visibilidade para o futmesa.
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